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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

"Um dia na vida" - Pesquisa ou filme?

A 34ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo exibiu “Um dia na vida”. Segundo a única informação prévia divulgada sobre a sessão, tratava-se de um “filme de Eduardo Coutinho”, o que foi suficiente para lotar o cinema na quinta-feira.
Sem créditos iniciais, nem ficha técnica no final, uma legenda apresenta os 96 minutos de material como sendo “pesquisa para um filme futuro” gravados alternadamente “durante 19 horas seguidas, da manhã do dia 1º à madrugada do dia 2 de outubro de 2009, no Rio,” registrando imagens de 8 emissoras de televisão de sinal aberto.

Em princípio, a sessão de quinta-feira passada foi a primeira e única, pela dificuldade, ou quem sabe impossibilidade, de obter a cessão do direito de uso das imagens, tanto das emissoras de televisão que as produziram e veicularam, quanto das pessoas – profissionais de televisão ou não – que participam das cenas incluídas na edição.
Se levarmos ao pé da letra a informação que se trata de “pesquisa para um filme futuro”, o que foi exibido deveria ser comentado levando em conta esse caráter preliminar e provisório. Isso, sem esquecer a curiosa e talvez inédita experiência de debater em público um filme ainda por fazer.
Por outro lado, caso se trate de “um filme de Eduardo Coutinho”, conforme foi divulgado, ainda que não possa voltar a ser exibido, caberia fazer outra ordem de considerações. Mais uma vez, ele teria tentado se reinventar como cineasta, procurando ao mesmo tempo redefinir o próprio cinema – ousado projeto autoral característico dos seus filmes a partir de Cabra marcado para morrer (1964-84).
Depois da sessão, “Um dia na vida” me pareceu ter sido tratado mais como “filme” do que como “pesquisa” por Jorge Furtado e Eduardo Coutinho, no debate de que também participei. O eventual caráter preliminar do que tinha acabado de ser visto sequer foi mencionado.

Segundo Eduardo Coutinho, a escolha do dia para fazer a gravação do que estava sendo transmitido pelas emissoras de tevê recaiu propositalmente sobre um dia comum, sem futebol ou qualquer evento de relevo previsível. Além disso, declarou que na redução de 19 horas para 96 minutos ficaram de fora deliberadamente as situações mais grotescas. Ainda assim, o que resulta é um pequeno circo de horrores em que a mulher é tema predominante.

Quando o debate foi aberto para participação da platéia, uma jovem equatoriana declarou que o “filme” não era um retrato do Brasil. Nada mais distante das intenções de Eduardo Coutinho do que pretender que seus filmes tenham tal teor de abrangência. Para ele linguagem metafórica é anátema. Daí a fúria algo exagerada de que foi possuído ao responder à inocente intervenção da menina.

Se em vez de “pesquisa para um filme futuro”, um “filme” tiver sido exibido, ainda que aparentemente não finalizado, talvez coubesse discutir a conveniência de indicar (a) quando cortes internos são feitos nas sequências, (b) o intervalo de tempo real entre uma sequência e a seguinte, (c) o transcurso das horas do dia – não apenas através de legendas ocasionais informando o horário em que a sequência foi ao ar. Como “filme”, acredito que poderia ter duração menor, deixando de lado certas repetições, especialmente algumas das cenas com pastores evangélicos, e concentrar o foco, mesmo sem torná-lo exclusivo, no tema da mulher.

Fica aqui este breve registro do singular evento. Concentrada em pouco mais de uma hora e meia, a programação das emissoras de tevê vista em “Um dia na vida” evidencia, primeiro, o mau uso da concessão pública de que são beneficiárias, e também os atentados sistemáticos à dignidade humana que cometem, abusando da liberdade de definirem o conteúdo de sua própria programação.
Eduardo Escorel para a Revista Piauí

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