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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Comemorando 105 anos – ou: uma ode aos anônimos - Miriam

Minha avó completou 105 anos em completo anonimato, numa casinha de vila na efervescente cidade de São Paulo. Não teve foto em jornal, nem políticos levando abraços, nem repórteres querendo saber como ela pôde ter (sobre)vivido tantos anos em meio a tantas mudanças econômicas, políticas e sociais assolando a vida - neste caso, a dos brasileiros – e tão lúcida ainda (tem a melhor memória da família). O mundo não se interessa pelos anônimos, felizes ou infelizes. Ainda bem!

Minha avó completou 105 anos: parabéns para as filhas, octogenárias, pela dedicação integral, razão pela qual ela ainda pode estar nesta vida, lúcida, mimada, querida!
Há pessoas que dedicam sua vida a grandes obras, grandes feitos. Serão lembrados para sempre por suas canções, suas telas, seus escritos, suas atuações, seus ensinamentos, seus edifícios, suas guerras e conquistas e até pelos malfeitos – o mundo adora descobrir os malfeitores, quem são, onde estão...
E há aquelas anônimas que se dedicam “apenas” à vida de outrem. Entregam muitas horas de seus dias aos pais, filhos, parentes ou amigos com necessidades especiais, voluntariamente a serviço da manutenção da existência. Ou a seus pacientes, como fazem médicos, enfermeiros ou motoristas de ambulâncias, com sua destreza e desvelo. Essas passarão desapercebidas pelo grande público. (Pintura de Reynaldo Fonseca)

Minha avó completou 105 anos. Viajei até lá para vê-la e cumprimentá-la, compartilhar alguns momentos... talvez mesmo para constatar e entender o como e o por quê - e talvez o para quê (?!) – de uma vida tão longa.
É uma pessoa simples, minha avó, como milhões de avós. Com garra criou suas filhas, ajudou a criar netos e bisnetos, em meio aos percalços e momentos de júbilo dos séculos (XX e XXI !).
Gostava de ler – no pretérito, pois já não enxerga bem. Romances e poesias. Numa dessas tardes, em que eu estava deitada na cama ao seu lado a observá-la, me veio com a seguinte pergunta:
- Mia, o que você lê neste quarto?
Silêncio ... precisei de alguns momentos para recuperar a voz.
- Noninha, leio aqui um monte de coisa. Uma história de amor, que você viveu com o nono, alegrias e tristezas compartilhadas. Leio umas cenas muito divertidas com meus irmãos e eu; e também as estrepulias de meus filhos pulando em sua cama, num tempo em que já não era mais proibido encostar na cama do casal. Leio as tardes passadas conversando com suas filhas, as angústias e serenidade diante do destino de cada membro da família. Ouço as risadas e o choro baixinho, tudo a seu tempo. O sofrimento pelo irmão preso na ditadura, a espera pelos netos distantes. Sinto o cheiro das batatas fritas que você corria a preparar quando eu chegava, grávida e faminta... o odor das necessidades físicas básicas, que já não são contidas - e o perfume de flores e o cheiro de talco ... e leio tantas coisas mais nesse quarto ... leio uma história banal e linda.
- É ... isso mesmo... (silêncio)
- E por que sua mãe e as outras não conseguem ler nada disso?
- Porque você e eu temos alma de poeta ...
E rimos, rimos muito, entre lágrimas e abraços. Momen to piegas? Ou humano?

Minha avó completou 105 anos. Muita gente me olha incrédula, quando digo. Outros se apressam a fazer cálculos para descobrir quantos anos tenho, pois vivo dizendo que tenho tantos anos quanto a minha vida! Meus alunos se espantam: ela nasceu em 1905???
Os médicos que a trataram quando quebrou o fêmur e teve de sofrer uma cirurgia, além da quase incrédula alegria com o sucesso do procedimento feito aos 104 anos, numa paciente fragilizada, pouco peso e músculos débeis, liberaram-na para ir comemorar o aniversário em casa, dizendo:
- Apague apenas uma vela de 5 anos, pelo seu novo século!

Minha avó completou 105 anos.
Ao se despedir de mim, como sempre faz pensando ser a última vez, me diz, com voz falha pela emoção:
- Mia, gostei muito de ser sua avó!
Eu é que gostei de ser a neta de mais uma grande e comum anônima, entre tantas pessoas anônimas que constroem a vida sem alarde.
Miriam Vizentini - Baden, Suíça

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