... e perguntou à atendente:
- Por favor, que dia é hoje?
- 1º de dezembro.
Deu-se, então, o curto-circuito: a caneta ficou imóvel, entre os dedos paralisados, na mão frouxa e travada, do braço rijo dependurado no corpo encurvado sobre o balcão.
A atendente aguardava impaciente pelo bendito cheque. Que demora era aquela, com a fila dando volta no caixa?
- A senhora quer que eu preencha na máquina registradora?
Ela entregou o pedaço de papel sem dizer palavra.
- Mas já começou à caneta, agora tem que terminar; pode ficar aqui ao lado, por favor; próximo! – tentando sorrir para a outra cliente - bom dia, dinheiro ou cartão? – que ninguém mais inventasse pagar em cheque! - crédito ou débito?
Beatriz achou que desmaiaria ali mesmo, no meio da loja. Estaria tendo um derrame?
Sem poder protestar, colocou a data no cheque, obediente à informação da moça. Quase não se lembrava mais quem era, mas conseguiu também assinar. Saiu da longe em câmera lenta, zanzando pelos corredores até notar o Papai Noel sentado em um trenó reluzente, puxado por renas enérgicas que alçavam um voo rasante e estático desde o centro do shopping. Onde esteve durante o ano inteiro?
Havia pouco tempo, muito pouco, os parentes do marido chegaram para passar o Natal. Ela providenciou presente para todos os sobrinhos e comprou tanta comida, que deu metade aos porteiros e à empregada. Foi buscá-los no aeroporto e devolvê-los quando já retornavam a Porto Alegre, depois do reveillon naquele clube cafona que o cunhado escolheu pelo terceiro ano seguido... No carnaval, o que mesmo haviam feito? Queria ir à praia, mas a filha ia fazer vestibular, o marido achou melhor não viajarem, fazendo-a permanecer imersa no sofá, zapeando sonolenta pelos desfiles das escolas de samba, trios elétricos e blocos de frevo da televisão.
As aulas recomeçaram em março, cada nova turma que chegava era pior que a anterior, e lhe deram oito naquele semestre; o problema na voz voltou, a filha começou a faculdade, graças a Deus, mas o que ia ser dela estudando Publicidade?!? O marido não quis dar palpite, como sempre, no que ele opinava? Quando foi mesmo que torceu o pé? Não, isso já foi em outubro, no dia do aniversário da sogra... Mas quando o semestre acabou, gente? Final de junho, como esquecer?, passou duas noites em claro corrigindo as provas, teve uma crise inédita de labirintite; em julho o filho voltou do intercâmbio se achando experiente e muito maduro, não aceitava mais ordens, onde foi parar o seu pequeno? Aquele congresso foi em... Maio? Há tanto tempo assim? A irmã do meio teve um aborto aos 42 anos, também pudera, era o que faltava, engravidar àquela altura, lá foi ela passar uma semana em Belo Horizonte para ajudar na recuperação, isso ainda era setembro? Foi antes do apagão? Depois da formatura do sobrinho? Na mesma época da obra na cozinha? Começou o tratamento de varizes em agosto, disso tinha certeza absoluta... Mas não era primavera? O consultório ficava de frente para o Aterro cheio de árvores floridas; então não foi em agosto... Mas o tempo está tão maluco... Foi em agosto, será?
Outro dia Verinha fez 47 e nem se lembrou que a amiga era escorpiana, senão teria percebido a chegada de novembro e não estaria tão sobressaltada... E o seu aniversário, onde havia passado? Em Ilhéus? Não, isso foi na comemoração dos 45; esse ano caiu justamente em um sábado e foi com o marido ao show de... Mas isso foi praticamente ontem, meu Deus...
Enfiou a chave no carro ainda em transe retrospectivo, quando tentou lembrar... Estava ali para o quê mesmo? E para aonde ia? Passara para comprar uma... E a sacola com as compras?!? De certo, descansava, inútil e esquecida, em algum canto da tal loja, do tal cheque, da tal atendente que a jogara no abismo do fim de mais um ano...
Que inveja do tempo inanimado das coisas, suspirou trancando de novo o carro e caminhando resignada de volta ao shopping.
Gabriela Sandes
sábado, 19 de dezembro de 2009
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