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sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Manoel de Barros


É em um pequeno quarto, no alto da casa, "escritório de ser inútil, isto é, de ser poeta", que Manoel de Barros prepara a "humanização das coisas" e a "coisificação do homem". Também inventa palavras, recorda-se de memórias que nunca existiram, dedica-se a uma poesia que tem o auge na construção do nada – tudo feito a lápis, em caderninhos por ele mesmo colados e pintados. Há um buquê de tocos de lápis velhos sobre a mesa – ele nunca os joga fora. Essa é a vida de vagabundagem que conseguiu adquirir: "Para escrever, é preciso ser vagabundo", acredita.

Uma rotina que só foi possível depois de muito trabalho. Autocondenado ao silêncio e à vida de fazendeiro por dez anos, Manoel rebelou-se e resolveu deixar a responsabilidade pelas terras nas mãos do filho, João. Foi quando se estabeleceu definitivamente na cidade de Campo Grande, aos 55 anos, para exclusiva dedicação à poesia, com idas semestrais ao Pantanal e visitas esporádicas ao Rio de Janeiro. Hoje, prefere o Pantanal da infância que viveu e da que ainda pode inventar, magoado com a degradação ambiental, o assoreamento dos rios e o avanço da fronteira agrícola. Venceu o prêmio Jabuti com O guardador das águas, em 1989, e com O fazedor do amanhecer, em 2002, e alerta que as águas e as alvoradas do Pantanal sofrem agora por abandono.


Aos 92 anos, Manoel de Barros continua em busca das miudezas. "Hoje, o meu olhar é ajoelhado no chão a ver os caracóis da terra, as rãs das águas, os lagartos das pedras", diz. A idade teima em o aproximar da infância. A surdez que o impede de ouvir as obrigações cotidianas e todas as coisas importantes, misteriosamente permite que ouça o tropel dos pássaros e a música de Brahms. A visão limitada, que dificulta a leitura de letras miúdas, serve para olhar bem de perto as formigas, as avencas e as violetas. Desbocado, diz aquilo que não gostaríamos de ouvir – e que até pode ser verdade. Para ele, seu último livro já foi escrito: Memórias inventadas: A terceira infância, que completa a trilogia de sua autobiografia ficcional. Se é possível que o autor personifique sua obra, Manoel atingiu a infância que narrou em seus versos.


OUTRA INFÂNCIA

Enquanto Nequinho brincava com as miudezas do chão, o pai, João Wenceslau Barros, fazia cercas, levantava acampamentos, cumpria a rotina da vida adulta no campo como capataz de fazenda. Do Beco da Marinha, beira do Rio Cuiabá, a família mudou-se para o Pantanal de Corumbá, extremo oeste do Mato Grosso do Sul. A criança foi criada naquele chão, brincando com sapos, lagartixas e tropas de formigas. Aos 13 anos, já atendia por Manoel de Barros, interno no colégio dos Maristas, cidade do Rio de Janeiro: leu, pela primeira vez, Os sermões, do padre Antônio Vieira, e descobriu o que era poesia. Apaixonou-se pela palavra, embora ainda não soubesse o que era paixão. Chamava isso de “dom”.


Uma capacidade primitiva e inocente, dedicada apenas a coisas sem importância: "As coisas sem importância são bens da poesia", explica. Procurou pelas palavras em toda a literatura quatrocentista portuguesa. Sofreu a revolução dos versos de Rimbaud. Aprofundou os estudos de linguística, tendo em mãos as palavras sagradas dos profetas bíblicos. Também estudou Direito, revezando as aulas com fugas para a Biblioteca Nacional, onde tinha encontro marcado com a poesia. Exerceu a advocacia, ainda que na primeira audiência tenha vomitado sobre o processo, na mesa do juiz.

Para se tornar poeta, desafiou o destino. Seguiu para uma viagem sem rumo, passando por Bolívia, Peru, Equador até chegar a Nova York, onde viveu por um ano, dedicado apenas à leitura da poesia norte-americana, às exposições de arte e à música barroca. "Aí, a minha vida virou", conta. A visão da miséria latino-americana lhe rendeu alguns poemas e o choque com o mundo civilizado exigiu a lembrança das coisas primitivas do Pantanal de sua infância. Resolveu construir imagens com palavras para fazer delas insetos, pássaros, águas e assobios.


Voltou ao Brasil, publicou o primeiro livro, Poemas concebidos sem pecado, e enfim soube o que era a paixão: conheceu Stela, com quem teve três filhos. Só aos 60 anos foi lançado para o grande público, confundindo a crítica e a imprensa com a falsa impressão de um poeta inato, bucólico, guardado no regionalismo pantaneiro. Foi fazendeiro, mas antes de calçar as botas já era plenamente poeta. Decidiu formar sua fazenda Santa Cruz apenas aos 44 anos, pai de família, autor de dois livros. Durante o período em que viveu no campo, não escreveu um só poema.


Se o mérito de Luis Vaz de Camões, o mestre, está na consumação de seus versos como idioma corrente, a feitura da própria língua, Manoel de Barros promove o contrário com a mesma grandeza: faz do idioma um revés, aplica-se a construções linguísticas que despertam o lado mais estranho da própria língua, ao mesmo tempo tão íntimo e compreensível. Se faltam os mares que influenciaram Camões, merecem destaque as lendas guaicurus do Mar de Xaraés – o mar do sertão pantaneiro, a fonte das águas que Manoel versou. E, como Camões, superou os limites da poesia.


REINVENÇÃO DA LÍNGUA

A carreira de Manoel de Barros é marcada pela paciência – mais que pelas atribulações da vida, com publicações, em média, a cada cinco anos. A feitura do poema lhe toma tempo. É preciso que cada palavra seja desacostumada, talvez até destruída, reformulada. "Sempre achei a linguagem destroncada mais bela do que a comum. A linguagem é a minha matéria plástica", explica. É uma linguagem comparável ao ciclo das águas do Pantanal. As tribos de índios Guaicurus percorriam os desvãos do Pantanal, entre as cheias e as épocas secas, até que encontrassem os descampados ideais para viver. Manoel promove essa fuga constante a cada verso, subvertendo o curso da língua.

Com traduções para seis idiomas, incluindo catalão e alemão, neste último assinadas por Curt-Meyer Clason – tradutor que também se dedicou às obras de João Guimarães Rosa –, Manoel de Barros estreará na língua inglesa, no próximo semestre, com a antologia Birds for a Demolition. Foram traduzidos cerca de 70 poemas escolhidos livremente. “O que me atrai na poesia de Manoel é a invenção de palavras e o uso de estruturas gramaticais surpreendentes. Isso faz o leitor perceber a linguagem de uma maneira diferente e, por meio dela, perceber o mundo com um novo olhar”, explica Flávia Rocha, poeta e jornalista paulistana que auxiliou a premiada tradutora nova-iorquina Idra Novey na pesquisa para a primeira tradução do poeta para o inglês.

O jornalista Bosco Martins, que acompanhou durante os últimos 30 anos a vida cotidiana do poeta e seus encontros com personalidades, políticos, escritores e artistas, promete um livro-reportagem cujo lançamento acontecerá em breve, ainda sem título definido. Assim como a série fotográfica a que Lucas Barros, fotógrafo e neto do poeta, tem se dedicado. Um raro registro da intimidade da casa, da fazenda e da família, com chance de resultar em uma fotobiografia.


Nas telas de cinema, Manoel já se viu no longa-metragem documental dirigido por Pedro Cezar, a desbiografia oficial do poeta Só dez por cento é mentira, lançada em 2008 no Festival de Cinema do Rio de Janeiro. Essas aparições, ainda que apenas para contestar a versão romântica de um poeta tímido e recluso, são regalos de valor inestimável para os leitores. Embora ele ainda prefira as cartas, inclusive para fazer promessas, como no trecho que segue, desvendando um título e o enredo do que pode ser o seu novo livro: "A infância da palavra. Gosto da semente da palavra, que é a voz de Deus que habita nas crianças, nos tontos, nos profetas e nos poetas. Gosto da infância da palavra". ©


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