Aos 14 anos, Araquém Alcântara queria ser jornalista, quem sabe escritor. Atravessou a adolescência embrenhado nos grandes sertões, veredas, de Lima Barreto, Machado de Assis, J. D. Salinger, Joseph Konrad e do próprio Guimarães Rosa. Em 1970, ingressou na Faculdade de Comunicação de Santos. Logo trabalhava na sucursal do Estadão e Jornal da Tarde. Tudo certo. Uma noite foi ver uma sessão maldita que um francês, Maurice Legeard, organizava em Santos. O filme era A Ilha Nua, de Kaneto Shindo. Um filme quase sem história, ou palavras. Um casal vivendo com dois filhos numa ilha inóspita. E a faina diária de levantar, buscar água, preparar a terra, a comida, buscar água outra vez, a canoa no trapiche, os pássaros nas pedras, os remos contra as ondas. A força e a beleza da pura imagem. A foto como síntese do dizer. Araquém, transido no escuro, foi tendo uma epifania, um negócio. Saiu dali tonto, abalroado, chamado.
No outro dia uma amiga, Marinilda, mostrava-lhe uma fotos bem comuns, de álbum de família, feitas por uma Yashica muito caseira. Ainda doente, febril do filme, Araquém mal olhou as fotos. Pediu foi a Yashica da Marinilda emprestada, comprou três filmes preto-e-branco e à noite foi para um cabaré do porto onde costumava ouvir bandas de rock e, com sorte, a canja de algum famoso de passagem. Lá estava ele, a câmara na mão, dois filmes no bolso, nenhuma técnica na cabeça, nervoso como em toda primeira vez. Mesmo sem coragem para nada, obscuramente sabia que naquela Yashica, naqueles filmes, estava segurando uma vida. Saiu tarde, sem apertar o botão. No ponto do ônibus, já amanhecia quando uma das moças do cabaré passou e desafiou: - Quer fotografar, é? Quer fotografar? Pois então fotografa aqui. Levantou a saia e mostrou o sexo. Foi sua primeira foto. A primeira exposição.
Não parou mais. As palavras já não serviam. Gaguejava nelas. O que interessava agora eram livros de fotografias, e imagens: Kurosawa, Bergman, Truffaut, Fellini, Wells, e os grandes fotógrafos, Cartier Bresson, Werner Bischoff, Ansel Adams, Ernest Haas. Araquém escolhe o primeiro tema do seu primeiro ensaio: os urubus de Santos. Eles estavam sempre por ali, sempre próximos ao que sobrava, peixes mortos na praia, detritos em Cubatão. Próximos, sempre, à miséria. Título meio panfletário de sua primeira exposição, em janeiro de 1973, no Clube XV de Santos: Os urubus da sociedade. Panos pretos cobriam as fotos dos urubus, os detritos da cidade, seu povo encardido. O visitante, para ver, tinha de desvelar, levantar a saia. Influência inconsciente daquela primeira foto no cabaré do cais? Pode ser, só que o obsceno ali era social. A exposição, aliás, foi tachada de comunista. E crivada de perguntas. Por que fotografar urubus, miseráveis, bichos que não vendem?
Mas Araquém prosseguiu. Já tinha uma espécie de lema. Escolher, sempre, com o coração. Prosseguiu e não se arrependeu de começar apostando no urubu.
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